A integração do feminino no cuidado da saúde

Publicado em 27 de fevereiro de 2019 (editado em 05 de abril de 2023).

 


Foto: Clark Van Der Beken (original Unsplash, editada por mim)

 

Fazer faculdade de psicologia foi ótimo. Durante 5 anos virei esponja e absorvi tudo o que as disciplinas me ofereceram, e até mais. Fui monitora, participei de grupos de estudos, me envolvi com alunos de humanas de outras universidades, estagiei em alguns lugares diferentes e escrevi a minha monografia com a mesma dedicação e entusiasmo de quem escreve o seu primeiro livro.

Por outro lado, ao mesmo tempo em que o meio acadêmico me abriu horizontes, ele me enrijeceu. Me lembro de ler sobre os esforços de Freud e sua trupe em utilizar metodologias que validassem a psicanálise como ciência, já que ela falava de conceitos como o do “inconsciente”, que não é observável nem a olho nu e nem sob um microscópio, portanto desafiador para a comunidade científica da época. Me lembro, também, das besteiras competitivas entre linhas de pensamento dentro da própria faculdade, algumas tentando diminuir a validade de outras com base no que seria ou não considerado científico dentro da disciplina.

Na época, eu não tinha ideia do significado daquilo tudo, mas entendi que para ser respeitada pelo meu trabalho e para honrar a posição científica conquistada arduamente pelos que vieram antes de mim (estou falando de Freud, Jung, Skinner) eu teria que renegar, ou em termos sistêmicos, excluir o que pudesse ser interpretado como sensorial e intuitivo.

Sete anos depois de me graduar Bacharel em Psicologia, entrei no salão de festas de uma casa no Lago Sul, em Brasília, para a minha primeira aula de BodyTalk. O curso duraria seis dias, mas eu comecei a passar mal já no primeiro. Nesse primeiro dia, dedicado a desprogramar a visão estreita de saúde que nos é ensinada no meio acadêmico, todos os meus paradigmas foram desafiados. A professora americana falava sobre uma tal sabedoria inata do corpo, e meu estômago embrulhava. Ela trazia conceitos da medicina chinesa, e minha cabeça estourava de dor.

Saí dessa primeira aula com vertigem, dor de cabeça, vontade de vomitar. Como ela ousava me tirar da zona de segurança na qual eu havia sido doutrinada na faculdade e que eu vinha cultivando há sete anos com tanto afinco, um lugar em que eu não teria que lidar com nada que meus olhos não conseguissem observar?

Ao mesmo tempo, dentro de mim borbulhava a sensação de que finalmente alguém estava tocando nesse assunto, falando sobre uma inteligência guiando a cura do meu corpo, consciências que se relacionam com os tecidos anatômicos de cada um dos meus órgãos, alternativas aos tratamentos com remédios caros ou intervenções invasivas. Ao final da aula corri para a casa da minha irmã mais nova, que morava por perto, e desabei a chorar, sentindo angústia e alívio ao mesmo tempo.

Fui dormir naquela noite jurando que não voltaria para a aula no dia seguinte. Quase dez anos depois, vocês já sabem o que de fato aconteceu.


Podemos dizer que esta medicina que nós conhecemos é Yang, masculina, concreta.

Na faculdade de ciências da saúde nós somos treinados a ver o ser humano como uma maquininha bem linear e concreta. Se algo dá errado, você substitui a peça ou faz reparos no sistema. Cirurgia e remédio são as soluções possíveis. Hoje em dia, mudança de hábitos e de dieta também entram no pacote, mas o resto continua baseado na ideia de que o corpo só anda em uma direção, a do envelhecimento e deterioração, e que quando ele começa a funcionar mal, não tem volta, “você vai ter que tomar este remedinho para o resto da vida”.

Usando os termos taoistas de Yin e Yang para falar sobre esse assunto, podemos dizer que esta medicina que nós conhecemos e da qual dependemos é Yang, masculina, concreta. A tecnologia desenvolvida na área da saúde é uma amostra da habilidade incrível do pensamento masculino em mensurar, categorizar e criar soluções para problemas pontuais como um tumor, um desequilíbrio bioquímico, um descompasso no coração. E a energia Yang é assim mesmo, muito precisa em sua objetividade.

Mas peraí. Apesar de toda essa evolução tecnológica, nós estamos doentes. Bem doentes. Não só estamos mais deprimidos, mais ansiosos, mais hipertensos, mais diabéticos. Estamos desconectados do corpo, alheios ao potencial de cura, de recuperação, de autorregulação que existe em cada um de nós.

Devido à sua própria natureza cartesiana, remediadora, linear, a medicina atual não sabe lidar com esse outro aspecto do corpo, aquele que é mais holístico, mais abrangente, mais sistêmico. E eu nem espero isso dela. Cada lado tem seu lugar e seu valor, e a visão sistêmica e preventiva não é o paradigma natural do pensamento Yang. Quem desempenha essa função é o feminino.


É mais um medo do diferente e uma incapacidade de entendê-lo, do que uma arrogância.

Entregar ao feminino o espaço que lhe cabe na sociedade não diz respeito somente ao direito de as mulheres ocuparem lugares tipicamente masculinos. O movimento é bem mais profundo e acontece tanto no nível coletivo quanto no individual da nossa consciência, no respeito e na honra ao feminino que existe em cada um de nós, homens ou mulheres, e no respeito e honra à energia feminina que já existe na sociedade, mas ainda é desvalorizada.

Abrir espaço para que mais mulheres ocupem cargos na política, na diretoria de empresas, que recebam os mesmos salários que seus colegas homens é uma pauta básica. Valorizar atividades de natureza tipicamente feminina, como a dos professores e cuidadores, e tratá-las como atividades tão valiosas quanto as dos engenheiros e advogados também é essencial.

A integração do feminino no cuidado da saúde, seguindo esta mesma linha, vai além de termos mais mulheres reconhecidas no meio médico e ocupando cargos importantes nos laboratórios farmacêuticos, nas secretarias de saúde, nas diretorias dos hospitais, que são constructos masculinos. Vai até mais longe do que a valorização das profissões dos enfermeiros e cuidadores.

Existe esse outro nível de integração, de inclusão do feminino que beneficia a todos nós, e diz respeito ao aspecto holístico e sistêmico da saúde e, por consequência, da medicina. É a (re)inclusão dos alimentos, do toque, das sabedorias milenares, do cuidado das emoções e da psique como possibilidades válidas de autocuidado.

Já conversei com diversos médicos e cientistas — homens e mulheres — sobre o meu trabalho e hoje eu entendo que aqueles que julgam como ingênua ou inválida a minha abordagem sobre a saúde o fazem porque, assim como eu na psicologia, foram doutrinados a reconhecer como verdadeiras somente as informações adquiridas e validadas pelos cinco sentidos concretos.

Hoje em dia eu não vejo mais a deificação da ciência e da medicina ocidentais com olhos julgadores. Pelo contrário, entendo que o pensamento médico ocidental é masculino e objetivo, e por não entender a sinuosidade do feminino holístico, trata de invalidá-lo. É mais um medo do diferente e uma incapacidade de entendê-lo, do que uma arrogância.


Um organiza e o outro conserta. Um funciona a longo prazo e o outro tem atuação imediata.

A medicina convencional trata o corpo como uma máquina complexa cujas partes, apesar de interagirem entre si, podem e devem ser endereçadas isoladamente. Os medicamentos produzidos atualmente são superespecializados, as cirurgias são superprecisas e os tratamentos podem ser muito pontuais. Devido à sua natureza, a medicina convencional precisa de um sintoma ou de alguma patologia para aplicar as suas técnicas, que não têm muita utilidade para organismos saudáveis. É no espaço do tratamento da doença que a medicina convencional funciona melhor.

Há dois anos, quando eu tive uma apendicite, foi ao pronto-socorro que eu me dirigi. Eu sabia que precisaria de uma cirurgia e não seria um floral que resolveria o meu problema. Tomei anestesia, antiinflamatório, antibiótico. A cirurgia demorou menos de 40 minutos e eu saí de lá apenas com três pequenos furos no meu abdômen. Uma infecção que há alguns séculos teria me matado, foi resolvida em uma tarde e eu voltei para casa 24h depois.

A medicina holística/complementar/alternativa, por sua vez, trata o corpo como um sistema inteligente e autorregulado. Neste campo, o corpo é visto como um organismo cujas partes não devem ser trabalhadas separadamente. Sua tecnologia não permite abrir o corpo de alguém e retirar um apêndice, mas sabe endereçar muito bem os fatores que se escondem por trás da apendicite. Seu principal foco é a prevenção de doenças e o tratamento das questões que vão além das patologias. O terapeuta integrativo não precisa de um sintoma para trabalhar e suas técnicas lhe permitem cuidar de organismos saudáveis para mantê-los equilibrados. É nesse espaço que ela funciona melhor.

Uma vez por ano, a minha ginecologista me examina, faz testes, apresenta dados e compara os resultados com os do ano anterior. Esses encontros me deixam segura e me apresentam um panorama concreto do meu corpo. Se nada de estranho aparece, isso é tudo o que ela pode fazer por mim, já que ela está treinada para atuar em cima das possíveis patologias.

Entre uma consulta anual e outra, no entanto, mesmo que todos os meus exames estejam perfeitos, eu trato as minhas ansiedades na psicoterapia, cuido do meu corpo com BodyTalk, uso os conhecimentos da medicina chinesa para cuidar da minha energia. Aqui o foco é na manutenção do equilíbrio — não só físico, como mental, emocional e energético.

Um trabalho não ocupa o espaço do outro. Eles possuem sabedorias e campos de atuação complementares. Um organiza e o outro conserta. Um funciona a longo prazo e o outro tem atuação imediata.

A maturidade que precisamos desenvolver na área de saúde é a integração verdadeira, a aceitação de que existe um espaço muito importante a ser ocupado pelo feminino no cuidado da saúde, que complementa (e não compete e nem substitui) o trabalho do masculino.

E junto com isso, já que todos os movimentos irradiam para os dois lados, eu enxergo que a inclusão da medicina integrativa pode trazer ainda melhores resultados para o trabalho da medicina convencional, que apoiada em duas pernas, pode chegar mais longe.

 
Existe esse outro nível de integração do feminino que beneficia a todos nós, e diz respeito ao aspecto holístico e sistêmico da saúde e, por consequência, da medicina

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