Expandir a natureza saudável no lugar de desenvolver o seu potencial

Publicado em 1 de fevereiro de 2021

 
 

“Historicamente, as psicoterapias no geral focaram muito mais em tratar o que não está dando certo, e deram pouca atenção à reconexão e à expansão da nossa natureza saudável.”

Esse trecho foi retirado do livro Entrega ao fluxo da vida, do Fernando Aguiar.

Eu adoro que o Fernando não tenha terminado a frase com alguma expressão como “desenvolvimento de nossos potenciais”. Adoro que ele tenha falado sobre a expansão de nossa natureza saudável.

Você consegue perceber a diferença psicológica de se ler “natureza saudável” em vez de “potencial”? Não dá uma sensação de leveza, quase um alívio? Para mim, é como se não houvesse algo a ser conquistado em um esforço para fora, mas sim algo com o qual a gente se reconecta, em um movimento pra dentro.

Desde o começo do ano, eu venho falando por aqui sobre a cultura do esforço e do desempenho. A ideia é questionarmos os excessos dessa cultura para encontrarmos o equilíbrio, o caminho do meio.

Um dos subprodutos da cultura do desempenho, que encontrou na internet um campo aberto para se espalhar, é o discurso do “mindset”, disseminado pelos coaches mundo afora (calma! se sentiu um gatilho aí, respira e continua… eu ainda estou construindo meu argumento). E um dos principais “mindsets” de nosso tempo é o do “desenvolvimento do seu potencial”.

Estou colocando esses termos no mesmo pacotinho porque é assim que eu os vejo sendo utilizados, como se o potencial adormecido em cada um de nós se limitasse a uma série de habilidades a serem despertadas apenas com o objetivo de aumentar nosso desempenho em determinadas áreas.

Dessa forma, acabamos focando nos aspectos pragmáticos do autodesenvolvimento e deixamos para trás o lado mais profundo, aquele que está abaixo da superfície. O resultado é uma sociedade de cérebros bombados e inteligência emocional atrofiada.

Qualquer semelhança com a sociedade do cansaço do Byung-Chul Han não é mera coincidência.


Foi após a leitura de Os cinco elementos e as seis condições, do Gilles Marin, que eu entendi a dinâmica e a complementaridade entre Yin e Yang. (Prefiro usar os termos chineses no lugar de “feminino” e “masculino” porque estes nos remetem a gênero e podem ativar resistências em nossas mentes ansiosinhas.)

E foi depois de ler O ponto de mutação, do Fritjof Capra, que eu consegui enxergar a dinâmica Yin/Yang em tudo o que existe no mundo, desde a política e a economia até a ciência e a psicologia.

O movimento da energia Yin, feminina, vai pra dentro. Precisamos dessa direção de movimento para sair da superfície e aprofundar, interiorizar os assuntos, os conteúdos, as experiências, cultivar o mundo interno.

O movimento da energia Yang, masculina, vai pra fora. Precisamos da direção yang na vida justamente para colocarmos no mundo, fazermos brotar na superfície, os assuntos, os conteúdos, os projetos, cultivar o mundo externo.

A dança é assim, pra fora e pra dentro e pra fora e pra dentro. Um sem o outro resulta em estagnação, acúmulo, rigidez. Anos de predomínio da dinâmica e da lógica da energia Yang em nossa cultura resultaram em uma sociedade bem masculina. O patriarcado é Yang. O cartesianismo é Yang. Nossa forma de fazer política é Yang. Nossa economia é Yang. As Olimpíadas são uma forma Yang de celebrar e unir comunidades. As ruas retas das nossas cidades são uma lógica Yang de construção.

O problema é que o Yang monopolizou a pista e melou a dança! Esta realidade de extremos na qual estamos vivendo é consequência do esgotamento do Yang. Na busca por mais crescimento, mais produção, mais prosperidade, insistimos em investir energia apenas no mundo externo, negligenciando o terreno fértil e complementar do mundo interno.

Por isso, quando eu vejo que até a psicologia, que costumava ser um dos nossos poucos refúgios Yin, foi sendo sequestrada pela lógica do pragmatismo para ser transformada em fazedora de fórmulas de desempenho, eu percebo que já passamos da hora de trazer equilíbrio para essa equação.


Essa dança entre os movimentos Yin e Yang é maior do que eu e você. Ela é a dança da consciência coletiva buscando sua equalização. Ou seja, quem se move é a consciência coletiva, alimentada por nós, que somos parte dela.

Nada do que acontece hoje em dia, do esgotamento crônico do qual vínhamos falando aos movimentos de inclusão social que estão acontecendo com muita força neste século, está descolado desse movimento maior da consciência coletiva em busca de equilíbrio e integração dos opostos.

Nessa história toda, eu sinto que temos dois papéis: um deles é um papel Yang, de olhar para fora e transformar em atitudes e comportamentos palpáveis os nossos valores: votando, reciclando, buscando consumir de forma consciente, exercitando nosso senso crítico, nos educando e educando nossos filhos para não reproduzirmos comportamentos e preconceitos estruturais, percebendo o impacto de nossas atitudes sobre o mundo etc.

E o outro é o papel Yin, aquele cujo movimento é para dentro, olhando para o nosso mundo interno de olhos bem abertos, reconhecendo que espelhamos dentro da gente as belezas e as injustiças do mundo, e que se somos nós que alimentamos a consciência universal, somos nós os responsáveis por fazermos “atualizações” nesse sistema.

E aí eu volto para o trecho do livro do Fernando Aguiar. Fiquei pensando nesse foco que ele dá não só para a resolução das feridas, reconhecimento da sombra de cada um etc, mas para a expansão de nossa natureza saudável. Desde que li essa ideia, não consegui pensar em nada mais moderno e genial. Porque se é saudável, não tem como dar errado, sabe

Então, sugiro que este ano a gente faça esse exercício de buscar o autoconhecimento para expandir a natureza saudável que há dentro de nós, em vez de focar somente em nossos potenciais ou em nossa sombra. Tenho certeza que vai ser interessante. Bora terminar 2021 com um belo upgrade no sistema.

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Referências

AGUIAR, Fernando. Entrega ao fluxo da vida: para além das estruturas de defesa de caráter. Brasília, DF: Psicologia Essencial, 2019.

CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação. Tradução: Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix, 2006.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução: Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2017

MARIN, Gilles. Os cinco elementos e as seis condições: uma abordagem taoista à cura emocional, à psicologia e à alquimia. Tradução: Cintia de Paula Fernandes Braga. São Paulo: Cultrix, 2010.

 
Historicamente, as psicoterapias no geral focaram muito mais em tratar o que não está dando certo, e deram pouca atenção à reconexão e à expansão da nossa natureza saudável
— Fernando Aguiar

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