Discernimento

Publicado em 31 de julho de 2023

 
Discernimento
 

D i s c e r n i m e n t o.

Aptidão para avaliar algo com sensatez e clareza — bom senso.
Capacidade para perceber a diferença entre o certo e o errado — juízo.
Destreza para entender algo com grande facilidade — perspicácia.
Ação ou capacidade de discernir, de distinguir com clareza.*

Na medicina chinesa, o discernimento é considerado uma sabedoria do intestino delgado, já que cabe a esse órgão diferenciar o que é nutritivo, e portanto deve ser absorvido e distribuído ao corpo pela corrente sanguínea, e o que não é nutritivo, e deve ser enviado ao intestino grosso para ser eliminado.

Essa alegoria é legal porque explica a dinâmica subjetiva do discernimento: sabendo que é inevitável interagirmos com a complexidade das informações, situações, pensamentos com os quais nos deparamos, lançamos mão do discernimento para gerenciar as camadas visíveis e invisíveis dessas informações, situações, pensamentos.

O discernimento, assim como todas as nossas inteligências, é uma função biológica que amadurece e se aprimora com a prática. Isso significa que as experiências que você atravessa ao longo da vida, principalmente aquelas nas quais você faz contato com cenários e ideias diferentes entre si, aperfeiçoam a sua capacidade de reconhecer falhas em narrativas, de avaliar se uma situação é confiável, de entender com clareza os vários lados de um contexto, e assim por diante.

Mas o nosso cotidiano, atualmente, nos empurra para o caminho contrário ao do discernimento. Em maior ou menor grau, aceitamos investir nossa atenção em espaços virtuais cujos algoritmos nos recompensam com conteúdos que reforçam nossas crenças e identidades e atrofiam a disponibilidade em coexistir com as outras bolhas cujas crenças e identidades diferem das nossas.

E isso não acontece só com o tio bolsonarista, não.

É verdade que esperamos que as pessoas usem o discernimento quando recebem uma notícia improvável pelo WhatsApp e não percebem que ela é fictícia. Mas também é necessário, em outra frente, manter essa habilidade em dia para reconhecer coalizões de autores e influenciadores reproduzindo ideias parecidas demais entre si, repetindo consensos sem relevo, sem muitas tonalidades, mesmo que sejam pessoas que nós admiramos e mesmo (aliás, principalmente) se forem ideias cuja falta de atrito nos acalenta e traz conforto, porque provavelmente estaremos nos deparando com algum tipo de ideologia disfarçada.

Por isso, a disponibilidade para ouvir quem pensa diferente de nós é um exercício de discernimento que não significa, obrigatoriamente, buscar pessoas que defendam ideias opostas às nossas, mas incluir em nosso rol de debates aqueles que se propõem a fazer o valioso exercício da autocrítica.

No livro A máquina do caos, Max Fisher afirma que "quando as pessoas acham que algo se tornou parte do consenso, elas tendem não só a aceitar como a internalizar essa opinião como se fosse sua". Apesar de essa internalização de ideias ter uma função importante de pertencimento social, que vem garantindo nossa sobrevivência em grupo desde o início da humanidade, quando o consenso se constrói artificialmente, por meio de algoritmos, o discernimento se torna uma prática essencial.

Mas o discernimento precisa de alteridade, de comparação, de uma dualidade, de um dois, um três. Precisa de um outro. E o corpo é quem nos diz onde nós terminamos e onde começa o outro, o que nos causa desconforto e o que nos traz conforto, nos mostra se uma informação, uma situação, um pensamento nos anestesiam ou nos revigoram. Um corpo encosta em outros corpos, e as leis da física se aplicam à superfície da pele, que tem atrito com outras peles.

O corpo é um elemento essencial do processo porque ele dá contorno para as experiências, trazendo as sensações que vão orientar o trabalho de discernimento da mente. A falta dessa materialidade nos ambientes virtuais simboliza a intolerância ao diferente que caracteriza muito da nossa experiência online, onde não há corpos. Sem o corpo, que é a nossa referência, não nos sentimos seguros para encarar a diferença no outro.

É necessário dar ao corpo o que ele precisa para continuar existindo, mas não fisicamente, porque o corpo físico não vai desaparecer, e sim em nossa subjetividade. Usar o corpo para sentir, para pensar, para decidir. Sentir o relaxamento do corpo ou a tensão do corpo quando você se depara com alguma situação. Fazer coisas que só se fazem com o corpo e vão além do exercício físico, como regar as plantas, cozinhar, arrumar a cama.

O corpo, portanto, nos garante a manutenção do discernimento, uma das inteligências mais essenciais para resistir ao que Byung-Chul Han se refere como “excesso de positividade” da contemporaneidade — a ausência do atrito, que seria equivalente à ausência do outro, do não-eu, do meu negativo. Um mundo sem o outro é um mundo do não-humano, do não-corpo — o mundo das máquinas.

(Este texto foi publicado, originalmente, na edição #19 do Boletim)

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Referências

*Definição encontrada em https://www.dicio.com.br/discernimento/. Acesso em 17 de julho de 2023.

BERARDI, Franco. Asfixia: capitalismo financeiro e a insurreição da linguagem. Tradução: Humberto do Amaral. São Paulo: Ubu, 2020.

FISHER, Max. A máquina do caos: como as redes sociais reprogramaram nossa mente e nosso mundo. Tradução: Érico Assis. São Paulo: Todavia, 2023

GHIRALDELLI, Paulo. Semiocapitalismo: a era da desreferencialização. Ibitinga, SP: CEFA Editorial, 2022.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução: Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2017.

KELEMAN, Stanley. Anatomia emocional. Tradução: Myrthes Suplicy Vieira. São Paulo: Summus, 1992.

MARIN, Gilles. Os cinco elementos e as seis condições: uma abordagem taoista à cura emocional, à psicologia e à alquimia. Tradução: Cintia de Paula Fernandes Braga. São Paulo: Cultrix, 2010.

 

O corpo é um elemento essencial do processo porque ele dá contorno para as experiências, trazendo as sensações que vão orientar o trabalho de discernimento da mente.

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