Bibliografia do Indivíduo-Coletivo

Publicado em 02 de outubro de 2023

 
Bibliografia do I-C
 

Quero apresentar a vocês os livros que estão ajudando a montar os alicerces do Indivíduo-Coletivo (1).

Esse projeto começou em 2018, assim que o Bolsonaro foi eleito. Fui pega de surpresa pelo resultado da eleição e percebi que tinha um buraco na minha formação que não me ajudava a explicar como aquilo havia acontecido.

Eu era especialista no Indivíduo, mas me faltava entender melhor o Coletivo.

Fui migrando dos livros de psicologia clínica em direção a obras escritas por sociólogos, cientistas políticos, filósofos e psicanalistas contemporâneos.

Logo no início, ainda meio verdinha, peguei o tanto que eu já havia estudado, e escrevi e gravei aquela temporada inteira do Metamorfose (2).

A pandemia veio, achei que não fazia sentido soltar outra temporada do podcast naquela época, mas acabei usando esse tempo para mergulhar ainda mais nos estudos. Disso surgiu a ideia de organizar o trabalho e dar um nome e um corpo para ele. Chamei a Alê Cavendish, da Avocado, para me ajudar, e chegamos ao Indivíduo-Coletivo.

Os livros abaixo são como pedaços de narrativas a respeito do mundo contemporâneo, que vão se juntando como peças de um quebra-cabeças e nos ajudam a entender o Zeitgeist deste início de século.

A máquina do caos (Max Fisher)

Fisher é jornalista do The New York Times e escreveu este livro depois de anos de pesquisa a respeito da influência dos algoritmos e a responsabilidade das big techs do Vale do Silício sobre acontecimentos importantes como o Brexit, as eleições de Trump e Bolsonaro, a violência em Mianmar etc. Além da temática política, ao longo do livro ele cita diversos estudos realizados em universidades ao redor do mundo que explicam quais são os efeitos, sobre a nossa subjetividade, do modelo de algoritmo que as redes sociais adotaram. Tenho dito que, de tempos em tempos, nos deparamos com livros que achamos que todo mundo deveria ler. Este é um deles.

“Muito após o potencial danoso da sua tecnologia vir à tona, as empresas viriam a dizer que apenas servem aos desejos dos usuários, que nunca os moldam nem manipulam. Mas a manipulação está embutida nos produtos desde o princípio.

O progressista de ontem e o do amanhã (Mark Lilla)

Lilla é um cientista político e jornalista americano. Eu acho este livro essencial para analisarmos, com olhar crítico e honesto, a esquerda atual, os movimentos identitários (e eu sei que esse nome incomoda a muita gente) e nosso cenário político atual. Lilla é muito objetivo em apontar o que ele chama de pseudopolítica, a dinâmica do não-diálogo, ressentido, fechado em si mesmo e dono da razão, que substituiu a verdadeira política, onde a escuta, o debate e a busca por consenso são o norte. Também recomendo o vídeo de sua entrevista para o Roda Viva, de 2019 (3).

“O que substitui o argumento, então, é o tabu. (…) Só aqueles com estados de identidade aprovados têm, como xamãs, permissão para falar sobre certos assuntos. (…) Hipóteses se revelam puras ou impuras, e não verdadeiras ou falsas. E não só hipóteses, mas meras palavras. Identitários de esquerdas, que se veem como criaturas radicais, contestando isso e transgredindo aquilo, se transformam em severas professoras protestantes quando se trata da língua inglesa, analisando gramaticalmente toda conversa à procura de expressões indecorosas e açoitando os dedos daqueles que as usam inadvertidamente.

Ressentimento (Maria Rita Kehl)

A Maria Rita é psicanalista e uma excelente escritora. Este livro é um estudo amplo do ressentimento como afeto - sua etiologia, como ele se apresenta em forma de comportamento, que tipo de dinâmica o ressentido estabelece com o seu suposto malfeitor etc. Mas além da análise do ressentimento no campo mais individual, Maria Rita descreve o ressentimento no campo político e dos movimentos sociais, em suas várias facetas.

“Ressentir-se significa atribuir ao outro a responsabilidade pelo que nos faz sofrer. Um outro a quem delegamos, em um momento anterior, o poder de decidir por nós, de modo a poder culpá-lo pelo que venha a fracassar.”

"Os membros de uma classe ou de um segmento social inferiorizado só se ressentem de sua condição se a proposta de igualdade lhes foi antecipada simbolicamente, de modo que a falta dela seja percebida não como condenação divina ou como predestinação — como nas sociedades pós-modernas — mas como privação."

Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico (Safatle, Dunker e Silva Junior)

Este livro é um compilado de artigos publicados sob a orientação dos organizadores, resultado de três anos de pesquisas do Laboratório de Pesquisas em Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP. O neoliberalismo é o sistema econômico vigente no mundo deste os anos 70 e sua natureza moralista e focada na liberdade individual extrapolou a economia e se embrenhou no imaginário da sociedade ocidental como um todo. Todos nós somos, em maior ou menos grau, influenciados por valores neoliberais que, por sua vez, moldam também o sofrimento psíquico contemporâneo (ansiedade, burnout, depressão, síndrome do impostor etc). Vocês vão perceber que esta leitura conversa com os livros do Mark Lilla, da Maria Rita Kehl e do Chul Han, listados neste email.

"Ou seja, o neoliberalismo é um modo de intervenção social profunda nas dimensões produtoras de conflito. Pois, para que a liberdade como empreendedorismo e livre-iniciativa pudesse reinar, o Estado deveria intervir para despolitizar a sociedade, única maneira de impedir que a política intervisse na autonomia necessária de ação da economia."

Sociedade do cansaço (Byung-Chul Han)

Já citei tanto este livro, em tantos lugares, que imagino que vocês estejam cansados de me ouvir falar nele. Mas continuo achando que ele é quase como uma síntese do mundo contemporâneo, que acaba sendo complementado e enriquecido pelas outras leituras indicadas nesta lista. 

"O sujeito de desempenho está livre da instância externa de domínio que o obriga a trabalhar ou que poderia explorá-lo. É senhor e soberano de si mesmo. Assim, não está submisso a ninguém ou está submisso apenas a si mesmo. É nisso que ele se distingue do sujeito de obediência. A queda da instância dominadora não leva à liberdade. Ao contrário, faz com que liberdade e coação coincidam. Assim, o sujeito de desempenho se entrega à liberdade coercitiva ou à livre coerção de maximizar o desempenho. O excesso de trabalho agudiza-se numa autoexploração. Essa é mais eficiente que uma exploração do outro, pois caminha de mãos dadas com o sentimento de liberdade. O explorador é ao mesmo tempo o explorado. Agressor e vítima não podem mais ser distinguidos. Essa autorreferencialidade gera uma liberdade paradoxal que, em virtude das estruturas coercitivas que lhe são inerentes, se transforma em violência. Os adoecimentos psíquicos são precisamente as manifestações dessa liberdade paradoxal.” 

A pedra da loucura (Benjamin Labatut)

Por último, deixo esta obra-prima, que me foi apresentada por uma amiga, a Mariana Masini. O Labatut se diferencia dos outros autores desta lista porque não é filósofo, cientista político, sociólogo, psicólogo, mas sim um escritor sensível, com uma das narrativas mais interessantes que eu li nos últimos tempos. Neste livro, ele descreve a sensação de loucura, de falta de nexo, de caos que nos atinge quando fazemos contato com alguns aspectos do mundo contemporâneo.

“Uma divindade trágica que detém o poder absoluto, mas que carece de compreensão: é isso que nós, seres humanos, nos tornamos no século XXI. E se esse é nosso Deus, estaria explicado por que o caos e a irracionalidade se transformaram, de repente, em caminhos para entrarmos no mundo. Também estaria explicado por que lunáticos perigosos voltaram a ascender como nossos líderes: eles trazem consigo a força da desrazão e cavalgam livremente sobre as ondas frenéticas da mudança como nenhuma pessoa com decência ou bom senso pode fazê-lo. Esses mensageiros sombrios oriundos das profundezas do nosso inconsciente, essas vozes distorcidas que podemos ouvir gritando à nossa volta… são sereias nos chamando para o naufrágio e a morte? São apenas idiotas cheios de som e fúria, contando histórias que não significam nada? Ou será que são os primeiros arautos de uma nova forma de consciência, absurda e desprovida de sentido, capaz de ver além da lógica, e da qual talvez estejamos recebendo uma mensagem que até agora não quisemos ouvir? Ainda é cedo demais para saber.”

 

(Este texto foi publicado, originalmente, na edição #20 do Boletim)

 

Os livros abaixo são como pedaços de narrativas a respeito do mundo contemporâneo, que vão se juntando como peças de um quebra-cabeças e nos ajudam a entender o Zeitgeist deste início de século.

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