O tempo, o espaço e o dinheiro na psique contemporânea

Publicado em 15 de abril de 2024

 
 

São quase quatro horas da tarde de uma segunda-feira e estou sentada em um café, aproveitando uma das últimas chuvas de Brasília antes do início de nosso longo período anual de seca.

Enquanto começo a me preparar para escrever este Boletim, a frase “Vou te ajudar a faturar o dobro do que você vem ganhando, na metade do tempo" escapa da conversa da mesa ao lado e chega até os meus ouvidos, o que desvia a minha atenção em direção aos dois homens ali sentados. Quero saber o rumo desse diálogo.

Os homens, de 30 e poucos anos de idade, parecem ser um consultor e seu cliente. O cliente tem um método de emagrecimento que combina dieta com exercícios físicos. O consultor tem um método de vendas para o método de emagrecimento. Ambos os métodos, ao que parece, desafiam tanto as leis da fisiologia humana quanto as do mercado, prometendo resultados maximizados em tempo reduzido.

Penso no psicanalista Joel Birman e em sua extensa pesquisa a respeito das características do mundo interno do sujeito contemporâneo: estamos vivendo uma época de inflação da dimensão do espaço e encolhimento da dimensão do tempo em nossa subjetividade.

Aos poucos, como acontece com a produção da subjetividade — ou mundo interno — de todas as pessoas que vivem em uma determinada cultura em um determinado período da história, nós, sujeitos do século XXI, fomos internalizando e reproduzindo essa lógica do encurtamento do tempo até o ponto de nem pararmos para analisá-la de forma mais criteriosa. Isso me parece estar refletido nos planos dos rapazes da mesa aqui ao lado.

Te prometo o dobro do dinheiro (dimensão espacial)
na metade do tempo (dimensão temporal).

Nessa mesma linha, o filósofo Paulo Ghiraldelli, ao analisar o mundo atual a partir da filosofia política, afirma que estamos na era do Semiocapitalismo, ou seja, em uma época de proliferação de símbolos (dimensão do espaço) que não se atrelam mais a um significado (é necessário tempo para dar significado a algo). A lógica é simples: quanto mais vazio for o conceito, mais fácil será o seu consumo.

É a camiseta do Nirvana na vitrine da loja de departamentos, vendida para uma geração que não ouve as músicas da banda. É o logotipo de um movimento social estampado em bonés e camisetas, usado até ser transformado uma espécie de marca, esvaziando a força semântica daquela imagem. É um conceito da psicopatologia primeiro transformado em jargão, e depois aplicado como palavra-chave para vender cursos sobre relacionamentos.

Quanto mais vazia for a imagem (dimensão espacial),
mais fácil será o seu consumo (dimensão temporal).

Quando nos deparamos com qualquer análise sobre a aceleração do tempo e o esvaziamento da linguagem na vida pós-moderna, nosso primeiro impulso é atribuí-los à internet e às redes sociais. Talvez você tenha feito o mesmo ao ler estes primeiros parágrafos do texto. Mas eu quero te convidar a me acompanhar em uma análise mais ampla, partindo de um fenômeno que vem se emaranhando à nossa subjetividade desde muito antes do surgimento da internet: o dinheiro e as formas de ganhar dinheiro.

Tanto a pressa quanto essa “semiotização” da subjetividade são efeitos de uma onda de transformação que já vinha tomando forma desde o século passado, quando fomos nos transformando em uma sociedade de consumo apoiada na promessa da felicidade por meio da liberdade da autogestão — desfazer-se do trabalho assalariado, ser dono de seus próprios horários, gerando o seu próprio dinheiro, seria libertador. A segurança, antes provida por um Estado comprometido com o bem-estar social, passou a ser vista como um enrijecimento e um tolhimento da liberdade.

Nesse sentido, os homens da mesa ao lado parecem os típicos sujeitos contemporâneos: supermergulhados no mundo do empreendedorismo, supervulneráveis financeiramente, livres para tomar café numa segunda-feira de tarde, sim, mas vivendo a ansiedade de ter que garantir o seu sustento em um mercado saturado, sem tempo para construir uma clientela, para testar o serviço oferecido, para amadurecer uma ideia, iludidos pela falácia da transição de carreira para uma vida com propósito.

No mundo contemporâneo, segurança é sinônimo de aprisionamento, e correr riscos é sinônimo de liberdade. E a liberdade é o valor máximo da sociedade do século XXI.

No consultório de psicologia, sabemos que aquilo sobre o que o paciente fala conscientemente é apenas uma entrada para a verdadeira questão, que está encoberta no inconsciente. O sintoma, seja ele físico ou psíquico, é a parte visível do conflito original, que se esconde no ponto cego. Só podemos resolver um problema depois de darmos o nome certo para ele. Por isso, a terapia nos ajuda a trazer para a consciência aquilo que está escondido no inconsciente. A análise do mundo atual nos pede um exercício semelhante. Aquilo que vemos mais facilmente na nossa frente e que nomeamos como os problemas principais — a internet, o patriarcado, a polarização etc — parecem ser sintomas de algo mais profundo, tão enraizado em nossa subjetividade, que temos dificuldade de enxergar.

Os homens da mesa ao lado, ansiosos para vender e fazer dinheiro neste mundo, com seus métodos de venda e de emagrecimento, chamando seu aprisionamento de liberdade, nos dão alguns sinais de para onde temos que olhar.

Afinal, o empreendendor livre para viver o seu propósito também tem boletos a pagar. 

(Este texto foi publicado, originalmente, na edição #21 do Boletim)

 
 

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